Destaque para outras Almas Nuas

domingo, 11 de fevereiro de 2018

"Vai Lavar Uma Louça!"



Jamais use a frase "Vai procurar uma louça pra lavar!" quando estiver discutindo com alguém ou se sentir ferido(a) no orgulho, tentando depreciar a outra pessoa. Quem utiliza esta expressão com certeza não tem respeito pela própria mãe. Hoje em dia, a maioria das mulheres vivem bem diferente do modo que nossas mães viviam... Ainda assim, há ainda aquelas que são donas de casa em tempo integral.

Já parou para pensar em quanta louça sua mãe lavou por todo o tempo em que a viu na cozinha? Aliás, o lugar onde mais a viu com frequência foi na cozinha. Uma mãe de família que passa tantos anos lavando louças, tem uma história muito marcante para contar.

Tão marcante quanto de minha amiga, cujo nome será mudado neste relato. Vamos chamá- la de Jurema. Ela sempre conta, como se fosse a primeira vez, como ecoa dentro da cabeça dela a voz do marido bêbado, aos berros, dizendo com o olhar profundo e fixo nos olhos dela: "Você nem é mulher!". Não vou julgar Jurema, nem dar uma de que sei o que é viver de verdade e determinar o que ela deveria ou não ter feito, o que foi errado ou certo. O que sei é que se vê o mesmo resultado em muitas famílias como um padrão... o que sei é que quando se fala de depressão, é preciso um olhar carinhoso e um ouvido realmente disposto a ouvir. 

Jurema teve seu primeiro filho ainda muito jovem. E logo conheceu um homem que considerou o homem que idealizou, aquele que seria o homem de sua vida. O início deste relacionamento não foi marcado por conquistas, romantismos, narrativas apaixonadas ricas em expectativa em poder rever a pessoa. Jurema ignorou tudo isso: ela o amou a primeira vez que o viu e amou tudo o que se relacionava a ele. Isto quer dizer que, aceitou ele assim como ele era, com suas qualidades e tantos defeitos.

Na ausência de tudo aquilo que alimenta o sentimento de uma pessoa por outra, Jurema se satisfazia apenas em estar com ele, mesmo que muitas vezes parecesse que para ele não fazia diferença. Por causa disto, houve várias vezes tentativas de rompimento mas, eles sempre voltavam um para o outro. Isto durou até que Jurema ficou grávida. E ele decidiu que deveríam se casar, pois era o correto a ser feito. Em seus tantos pensamentos consigo mesma, Jurema não queria este casamento por não estar certa do sentimento de seu amado por ela. Não sabia se o que ele sentia seria suficiente para um casamento e para construir uma família. Ainda assim,  a atitude dele foi tão incomum - de meter as caras e enfrentar a situação - que Jurema amou isto nele também e eles se casaram.

O começo do casamento também foi o período da gravidez. Jurema ainda não havia vivido uma gestação com uma vida em comum com o pai de seu filho. Tudo era muito novo, ela era ainda muito imatura e a insegurança em relação as mudanças de seu corpo era gritante. Tão gritante que gerava várias discussões, ainda mais quando ele vez ou outra encontrava com alguma 'amiga' pela rua ou nos corredores do supermercado. Ela simplesmente se achava um lixo, apesar dele estar radiante com o fato de ser pai.

A criança nasceu e por alguns meses, ele demonstrou a ela ser o homem mais apaixonado do mundo. Jurema lhe deu seu primeiro filho e ele sentia-se realizado. E até hoje ela não sabe porque durou tão pouco. Talvez, porque junto com o matrimônio e a paternidade vieram também as contas para pagar e a despensa para sempre encher. Nunca mais Jurema viu demonstrações de afeto vindos de seu parceiro. E o sentimento que já não era alimentado antes, começou a passar fome. Ainda assim, Jurema o amava verdadeiramente. E o Amor parece ser capaz de vencer e superar tudo!

Jurema decidiu então se render por completo ao seu sentimento pelo agora seu marido. Fez de sua casa um lar e de seu lar um santuário. Fez de sua tão jovem família o seu bem mais sagrado. Dormia pouco, mantinha a casa impecavelmente limpa o dia inteiro, inclusive a pia. Lavava louça várias vezes ao dia. O cesto de roupas sujas nunca estava cheio, mas, o varal sim: e ela passava peça por peça, organizava os guarda roupas e sempre se certificava que aquelas roupas que sempre precisavam usar estavam limpas, passadas e disponíveis para o uso. Tinha horários para tudo para ensinar suas crianças, inclusive das refeições. Cozinhava o dia todo, então , ela era encontrada encostada no tanque, na pia ou no fogão. Seus filhos eram limpos e sadios. Iam para a escola, cada um em um horário, cada um com uma exigência, mas ela nem parava para pensar: ia e fazia o que tinha que ser feito. Ainda dava conta de brincar com os filhos, ajudar nas tarefas da escola, cuidava dos animais de estimação e mantinha o enorme quintal limpo para que as crianças pudessem brincar. Á noite, cansada, tomava um banho, esperava o marido para jantar, sempre comiam todos à mesa e ainda tinha que satisfazer o marido na cama. Ele era jovem e tinha muito 'apetite'.

Para que sua família não ruíssem como ela via acontecer com tantas, ela se sacrificava, se dedicava, engolia sapos, aguentava desaforos, críticas e exigências. Nunca havia um elogio, uma palavra de incentivo ou de motivação mas, ainda assim, seu amor era suficiente para preservar seu bem mais precioso.

Venerava o marido e os filhos, acreditava piamente que tudo o que estava fazendo era um investimento sem valor a ser medido e que eles mereciam cada minutos de sua vida dedicado a eles. Até que um dia ela descobriu que seu marido teve uma amante. Naquele dia ela soube exatamente o que significava perder o chão. Seu mundo ruiu! E o pensamento que vai rasgando tudo por dentro é: "E todos estes anos de dedicação, e todo o amor que senti, e de repente ele se viu diante de uma estranha e se enamorou dela? Ele a conquistou como não fez comigo, ele a elogiou como não fez comigo, ele a agradou como não faz comigo, ele a levou a lugares que nunca pensou em me levar..."

Ele negou incessantemente apesar de ainda haver provas explícitas ,mas, se mostrou desejoso em continuar e manter a relação dos dois... Ela o amava, o Amor é um conjunto de virtudes e ela perdoou. Perdoou, continuou o venerando mas, nunca mais conseguiu confiar nele. Ela confiava muita coisa a ele, mas, sabia que a qualquer momento ele poderia esquecer quem era e com quem vivia e a vida que tinha e se engraçar com alguma mulher pois, foi fraco o suficiente para fazer isso uma vez. 

E foi uma mulher que ligou em casa, e foi uma pedra de lingerie que encontrou no carro, e foi um brinco que encontrou no banheiro, e foi o olhar da colega de trabalho em uma festa da empresa e assim foram constantes humilhações, sentimentos de vergonha dominando o interior de uma mulher que acreditava que deveria ser exemplar, coroa de honra para o marido para que ele fosse bem visto e grande. O que ela passou a ver é que quando ele progredia, a desprezava e se sentia o todo poderoso diante dos outros. Que ele era bem visto por julgarem que ele tinha uma boa mulher porque ele a fazia assim e ninguém se dava conta de que ela era assim e procurava melhorar cada vez mais para que ele se sentisse feliz com ela. Mas, quando as coisas iam de mal a pior, era para ela que ele corria. Era ela quem estava ao seu lado, o incentivando, o fazendo acreditar que tudo iria passar...

Claro que você que vive tão diferente de como sua mãe vivia dirá porque então ela não o deixou. Ela abandonou estudos, trabalho, profissão, deixou de lado todo seu potencial para se dedicar inteiramente a família e ao casamento. Porque família e casamento não é igual peça de roupa que você usa uma vez e joga no cesto de roupa suja. Marido não é um acessório para satisfazer o Ego e filhos não são bichinhos de estimação. Se ela se separasse, teria que deixar os filhos em casa aos cuidados de só Deus sabe quem, faria dois ou três turnos - trabalho, casa e filhos - e teria que ser não só a mãe que sempre foi como teria que ser também um pai que não estaria mais presente.

Ela precisou fazer uma escolha... O casamento havia fracassado, ela não era mais mulher suficiente para seu marido que agora vivia se embriagando e a tachando de todos os adjetivos ruins possíveis, mas, ela nunca deixaria de ser mãe. Ainda precisava criar e ensinar os seus filhos a crescer. Ela reprimiu as magoas, ela arquivou as lembranças de cada traição e de cada vergonha que passou, ela fingiu esquecer, tentou engolir cada sapo que se enroscava, ela chorava escondida de madrugada e sorria durante o dia e ela perdoou, perdoou, perdoou. E ela foi todo tipo de mulher que sua moral permitiu, tentando encontrar aquela que agradaria seu marido para que enfim ele se sentisse feliz ao lado dela.  E eles brigavam e ela cuidava das coisas dele, ela fazia o jantar como sempre, ela mantinha a casa limpa e as crianças em suas rotinas e ele parecia nunca ver nada disso.

E os anos foram passando. Jurema e seu marido foram amadurecendo juntos. Aprenderam muitas coisas juntos. E criaram seus filhos. Jurema mudou em muitas coisas... Seu marido também, mas, em algumas ele continua exatamente o mesmo. É previsível quando ele irá decepcionar. Então, de mais ou menos uns dois anos para cá, Jurema começou a avisar que ele estava a perdendo. Começou a avisar que conseguiria viver sem ele. E nada. Ela tentou de todas as formas possíveis avisar. E ela começou a ver um tratamento da parte dele estranho, interessante eu diria. Um tratamento dado normalmente a quem se tem consideração. O respeito pode parecer ter acabado, o amor, ou a paixão, o tesão, o interesse que nunca apareceu, mas, ele tinha consideração. Gentil ele nunca foi, amoroso nem pensar mas, haviam gestos que demonstravam consideração. Para o amor que Jurema sentia poderia ser o bastante para alimentar o que ela sentia mas, já era tarde demais. Depois de tantos anos de extrema devoção ao que ela acreditava ser seu bem mais precioso, Jurema entrou em depressão. Foram tantas decepções, frustrações, humilhações, mágoas, tristezas que nem ela mesmo se deu conta de que estava cada vez mais depressiva. Ela fez da alegria de sua família a sua alegria. O que ela gerou pra si mesma foi quase nada, mas, muito se pensarmos que ela se realizava doando-se a família.

Ela não tinha mais suas crianças que precisavam constantemente dela. Não havia mais um marido que se colocava como tal, ou um homem que tivesse ao menos um interesse sexual. Nem de sua companhia ele fazia questão.Ele a via chorar e não esboçava nenhuma reação. Simplesmente ficava atento a tv até pegar no sono. E de tudo o que Jurema fez, percebeu que só ela havia mudado: tudo em volta continuava do mesmo jeito. E toda vez que ela encosta na pia para lavar louças ela chora. Chora tudo o que aquela louça representa! Chora por fazer de um trabalho chato algo agradável porque era para o bem estar de sua família. Mas, Jurema se pergunta: Onde está a família que eu procurei cativar? A pia cheia de louça hoje é uma visão desesperadora com tudo o que ela representa! É Jurema andando casa a fora arrumando e limpando o que sujam ou tiram do lugar. É Jurema de um lado para o outro sem ser notada. São os pratos sujos depois da janta sem ouvir ao menos um 'obrigado'. São uniformes pendurados no varal e a certeza de que na segunda- feira tudo estara pronto para que possam usar. E a refeição tendo que ser preparada quando ela nem apetite sente mais. É tanta coisa...

Jurema passou 5 dias no quarto, dormia e só levantava para ir ao banheiro e beber água. Absolutamente ninguém pareceu notar isso. Ela sabia que ali ninguém iria mover nem um dedo para tirá-la daquela situação. O corpo já estava todo dolorido de ficar apenas deitada. Pensou em levantar e tomar um banho. Pensou em ir tomar um sol mas, não consegue sair nem no quintal. Pensou em um modo de ficar menos no quarto e pensou em como conseguiria sair dessa sozinha. 

Ela não consegue fazer nada, não vê mais sentido em nada, não tem forças pra fazer nada. A única coisa que tem conseguido fazer como a tantos anos fez foi lavar a louça. Ela tentou contar quantas vezes na vida lavou uma louça... A pia cheia a faz sair do quarto, limpar a cozinha e se tiver um pouco de forças sobrando, fazer uma refeição para a família. Jurema tem conseguido sair do quarto mas, não consegue sair da depressão.

Em um final de semana, o marido resolveu que haveria uma pequena reunião familiar em sua casa. Jurema se preparou psicologicamente para isso. Horas antes, desmarcaram tudo para que todos fossem para a reunião de família na casa de outra pessoa da família. Ela não consegue sair de casa, ela não consegue conversar com as pessoas, ela só chora e o marido, conformou-se rápido que ela não iria e simplesmente foi, deixando-a chorando. Quando voltou já era noite. Olhou para Jurema com desprezo. Ela havia chorado o dia todo e se sentia a pior das criaturas e um lixo - como ela sempre diz. Ela teve certeza de que era mesmo um lixo com o modo que o marido a olhou. Ainda ouviu um "você sente prazer em se fazer de vítima?". Jurema ironizou: "Sim, olha pra minha cara, sou a cara do sucesso, estou radiando felicidade porque chorar o dia todo me satisfaz!". O marido ligou a tv em som máximo, foi tomar banho, deitou no sofá mesmo e dormiu rápido. Jurema ainda estava chorando e não sabia mais o que fazer para parar. Os filhos? Cada um estava se divertindo como convinha a eles, mas, longe dali, longe da cara da mãe derrotada que - segundo eles - gosta de causar e chamar a atenção. Não suportam mais o clima entre os pais e acham que o estado de Jurema é especificamente por causa do marido ou que tiveram nova discussão. Toda dedicação dos pais não é suficiente para os filhos ao menos os suportarem ...

Jurema me disse: "Tudo o que eu fiz na vida se resumiu a lavar louças! Na casa de meus pais eu vivia lavando louça e quando trabalhava fora todo meu salário tinha que ir para a mão da minha mãe que ainda assim dizia que eu não prestava. Eu fiz da minha família tudo o que eu tinha neste mundo e hoje estou sozinha aqui, ignorada e ainda servindo de chacota! Eu tenho pedido ajuda e ninguém vê.".

Enquanto gesticulava, vi vergões vermelhos nos braços de Jurema. Para não se matar cortando os pulsos, ela risca em volta do pulso num esforço descomunal em não atentar contra a própria vida: "Quero viver, mas, sabe quando parece que só te resta a morte?". Ela pediu licença para desligar o vídeo pois, tinha que lavar louça, caso contrário iria voltar para a cama e dormir ainda mais. 

Olhei para minha pia cheia de louça... Eu também não aguento mais lavar louça! Pensei em Jurema e se teremos outra conversa - é tão difícil conseguir isso... Pensei como se sai do estado depressivo em que ela se encontra... Pensei se ela vai conseguir sair ou se vai acabar cortando os pulsos e continuando invisível, sendo apenas mais um número na estatística de depressivos que se matam. Pensei que se ela continuar resistindo e se mantendo viva, ela irá continuar lavando louças, servindo de empregada para sua família pro resto de sua vida?

Não mande ninguém lavar louças... Quantas vezes você mesmo(a) tenta fugir de fazer isso? Você nem sabe o que tem por trás de um monte de louças...


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